"Piratas” Somalis: A luta contra o arrasto e as descargas de lixo tóxico
Najad Abdullahi/ Johann Hari / Mohamed Abshir Waldo - 03.12.09
Ainda não se esfumaram os ecos da notícia de que a fragata portuguesa Álvares Cabral ao serviço da NATO capturou um grupo de piratas somalis que atacou o navio de pesca espanhol.
Mas…, serão piratas ou pescadores/defensores das suas águas territoriais contra a Pesca Ilegal Não Declarada e Não Regulamentada?...
A comunidade internacional condenou com vigor e declarou guerra aos piratas/pescadores somalis, enquanto protege discretamente as operações das suas frotas dedicadas á Pesca Ilegal Não Declarada e Não Regulamentada (IUU, sigla em inglês) procedentes de todo o mundo, que pescam furtivamente e, além disso, descarregam lixos tóxicos em águas somalis desde que caiu o governo desse país há 18 anos. Quando colapsou o governo da Somália, em 1991, os interesses estrangeiros aproveitaram a oportunidade para começar a saquear as fontes alimentares do mar do país e a utilizar as águas sem vigilância como depósito de resíduos nucleares e tóxicos.
Segundo o Grupo de Trabalho de Alto Mar (HSTF, sigla em inglês), em 2005 mais de 800 barcos pesqueiros IUU operavam ao mesmo tempo em águas da Somália, aproveitando-se da incapacidade de o país vigiar e controlar as suas próprias águas e zonas de pesca. Os barcos IUUs retiram anualmente aproximadamente 450 milhões de dólares em mariscos e peixes das águas somalis. Assim roubam uma fonte inestimável de proteínas a uma das nações mais pobres o mundo e arruínam o sustento de vida legítimo dos pescadores.
As reclamações contra a descarga de lixos tóxicos, assim como a pesca ilegal, têm existido desde princípios dos anos 90, mas as provas físicas surgiram quando o tsunami de 2004 fustigou o país. O Programa do Ambiente das Nações Unidas (UNEP, sigla em inglês) relatou que o tsunami rebentou os ferrugentos contentores de resíduos tóxicos, que se derramaram pelas margens de Puntland, no norte da Somália.
Nick Nuttall, porta-voz do UNEP, disse á cadeia árabe Al-Jazera que, quando os contentores se romperam ou foram abertos pela força das ondas, expuseram á luz uma “actividade espantosa” que se tinha estado levando a cabo durante mais de una década. “A Somália está a ser utilizada como lixeira para resíduos perigosos desde o começo dos anos 90, e continuou com a guerra civil deflagrada nesse país”, disse. “O lixo é de muitas classes diferentes. Há detritos radioactivos de urânio, os principais e metais pesados como cádmio e mercúrio. Também há lixo industrial, detritos de hospital, lixos de substâncias químicas e tudo o que se queira mencionar”.
Nuttall também disse que desde que os contentores chegaram ás praias, centenas de residentes ficaram doentes, afectados por hemorragias abdominais e da boca, infecções na pele e outras doenças. “O mais alarmante aqui é que se está descarregando lixo nuclear. O lixo radioactivo de urânio está matando potencialmente os somalis e está destruindo totalmente o oceano”, disse.
Ahmedou Ould-Abdallah, enviado da ONU para a Somália, disse que na prática o petróleo contribuiu para a guerra civil de 18 anos na Somália, pois as companhias pagam para descarregar o seu lixo aos ministros do governo e/ou aos líderes da milícia. “Não há controlo governamental (…) mas sim poucas pessoas com elevada base moral (…), estão pagando a gente do topo, mas por causa da fragilidade do “governo federal transitório”, algumas destas corporações agora nem sequer consultam as autoridades: simplesmente descarregam o lixo e vão-se embora”.
Em 1992 os países membros da União Europeia e outras 168 nações assinaram a Convenção de Basileia, sobre o controlo de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e seu armazenamento. O convénio proíbe o comércio de lixo entre os países signatários, assim como também aos países que não assinaram o acordo, a menos que tenha sido negociado um acordo bilateral. Também proíbe o envio de detritos perigosos para zonas de guerra.
Assombrosamente, a ONU não atendeu aos seus próprios princípios e ignorou súplicas somalis e internacionais para deter a devastação contínua dos recursos marinhos somalis e a descarga de lixo tóxico. As violações também foram largamente ignoradas pelas autoridades marítimas da região. Este é o contexto em que apareceram os homens a que estamos chamando “piratas”.
Há acordo em que no principio foram os pescadores somalis comuns quem usou lanchas rápidas para tentar dissuadir os barcos descarregadores e arrastões, ou pelo menos aplicar-lhes um “imposto”. Chamaram a si mesmos “Guarda-costas Voluntários da Somália”.
Um dos líderes dos piratas, Sugule Ali, explicou que o seu motivo foi “pôr fim á pesca ilegal e ás descargas nas nossas águas… Não nos consideramos bandidos do mar. Consideramos que os bandidos do mar (são) os que pescam ilegalmente e descarregam lixo. Nós trazemos armas mas nos nossos mares”.
O jornalista britânico Johann Hari observou no Huffington Post que, enquanto nada justifica a tomada de reféns, os “piratas” têm, de maneira desconcertante, o apoio da população local que lhes dá razão. O sitio web independente WardherNews [1], da Somália, conduz a melhor investigação que temos sobre o que pensa o somali comum. Descobriu que 70% “apoia fortemente a pirataria como uma forma de defesa nacional das águas territoriais do país”.
Em vez de tomar medidas para proteger a população e as águas da Somália contra as transgressões internacionais, a resposta da ONU a esta situação foi aprovar resoluções agressivas que dão direitos e animam os transgressores a empreender a guerra contra os piratas somalis.
Um coro de países que pede para endurecer a acção internacional conduz a uma precipitação naval multinacional e unilateral para invadir e tomar o controlo das águas somalis. O Conselho de Segurança da ONU (de que alguns membros podem ter muitos motivos ocultos para proteger indirectamente as suas frotas pesqueiras ilegais em águas somalis) aprovou as resolução 1816, em Junho de 2008, e 1838, em Outubro de 2008, que “convidam os estados interessados na segurança das actividades marítimas a participar activamente na luta contra a pirataria em alto mar fora das costas de Somália, particularmente disponibilizando navios de guerra e aviões militares…”
A NATO e a União Europeia emitiram ordens para o mesmo efeito. A Rússia, o Japão, a Índia, a Malásia, o Egipto e o Iémen juntaram-se á batalha, juntamente com um número cada vez maior de países.
Durante anos, as tentativas realizadas para controlar a pirataria nos mares do mundo através de resoluções da ONU não puderam aprovar-se, em grande parte porque as nações membro sentiam que tais acordos afectariam a sua soberania e segurança. Os países são pouco propensos a ceder o controlo e a patrulha das suas próprias águas. As resoluções 1816 e 1838 da ONU, às quais se opuseram algumas nações da África Ocidental, do Caribe e América do Sul, por conseguinte, foram estabelecidas para se aplicar somente á Somália, um país que não tem nenhuma representação nas Nações Unidas com força para exigir emendas destinadas a proteger s sua soberania. Igualmente, foram ignoradas as objecções da sociedade civil somali ao projecto de resolução, que não fez nenhuma menção á pesca ilegal nem aos perigos da descarga de lixo.
Hari perguntou: “Esperamos que os somalis esfomeados permaneçam passivamente nas suas praias, remando entre o nosso lixo nuclear, e nos observem como lhes arrebatamos os seus peixes para os comermos em restaurantes de Londres, Paris e Roma? Não temos actuado contra esses crimes. Mas quando alguns pescadores responderam interrompendo o trânsito no corredor marítimo de 20% do abastecimento de petróleo do mundo, começámos a gritar sobre esta “maldade”. Se realmente queremos ocuparmo-nos da pirataria, necessitamos extirpar a raiz que a causa – os nossos crimes - , antes de enviar as canhoneiras para libertar a rota de criminosos somalis”.
Actualização de Mohamed Abshir Waldo (de “WardheerNews”)
As crises de pirataria múltipla na Somália não diminuíram desde o meu artigo anterior, “As duas piratarias na Somália: Por quê uma palavra ignora a outra?”, publicado em Dezembro de 2008. Continua com nova pujança toda a pirataria ilegal de pesca, a descarga de lixo e o tráfico marítimo ilegal. Os pescadores somalis, convertidos em piratas como reacção á pesca furtiva massiva estrangeira armada, intensificaram a sua guerra contra toda a espécie de navios no golfo de Adén e o Oceano Índico.
Numa resposta internacional, os governos estrangeiros, as organizações internacionais e os grandes meios de informação uniram-se para demonizar a Somália e descrever os seus pescadores como homens malvados que surpreendem os navios e aterrorizam os marinheiros (ainda que não se tenha danificado nenhum). Esta apresentação é distorcida. Os grandes meios disseram relativamente pouco sobre as outras piratarias, a da pesca ilegal e a descarga de lixo.
As marinhas de guerra aliadas do mundo – com uma frota superior a 40 vasos de guerra, dos quais 10 asiáticos, árabes e de países africanos, assim como de muitas nações membros da NATO e da União Europeia – intensificaram a sua caça aos pescadores-piratas somalis, sem se importarem se estes realmente praticam a pirataria ou a pesca normal nas águas somalis.
As diversas reuniões do Grupo Internacional de Contacto para a Somália (ICGS, sigla em inglês) em Nova York, Londres, Cairo e Roma continuam intensificando a demonização dos pescadores somalis e impulsionam outras acções punitivas, sem uma única menção ás violações da pesca ilegal e a descarga tóxica de navios com bandeira daqueles mesmos países que se sentam nos foros do ICGS e da ONU para julgar a pirataria.
Na reunião anti-pirataria do ICGS no Cairo, em 30 de Maio de 2009, o Egipto e a Itália foram os países que mais insistiram em pedir um castigo severo para os piratas-pescadores somalis. Enquanto estes países ICGS se reuniam em Roma (10 de Junho de 2009), a comunidade local da cidade costeira somali de Las Khorey reteve uma barcaça italiana e dois barcos arrastões egípcios abarrotando de peixes capturados ilegalmente nas águas somalis, que por sua vez rebocavam dois enormes tanques suspeitos de conter lixo tóxico ou nuclear. A comunidade de Las Khorey convidou peritos internacionais a que viessem investigar estes casos, mas até agora não houve resposta ao convite.
Deve assinalar-se que a IUU (sigla em inglês de Pesca Ilegal, Não Declarada e Não Regulamentada) e a descarga de detritos estão ocorrendo também em outros países africanos. A Costa do Marfim é outra vítima importante da descarga tóxica internacional.
Diz-se que os actos de pirataria realmente são actos de desespero e, como no caso da Somália, um homem transformado em pirata é ao mesmo tempo guarda-costas.
Notas:
[1] www.wardheernews.com
Fontes:
Al Jazeera English, 11 de Outubro de 2008, “Toxic waste behind Somali piracy”, por Najad Abdullahi; Huffington Post, 4, de Janeiro de 2009, “You are being lied to about pirates”, por Johann Hari; e WardheerNews, 8 de Janeiro de 2009, “The Two Piracies in Somalia: Why the World Ignores the Other”, por Mohamed Abshir Waldo.
Traducción de Ernesto Carmona (especial para ARGENPRESS.info)
Fuente original: www.argenpress.info.
Tradução de Guilherme Coelho, a partir do texto em espanhol publicado pela ARGENPRESS.info.
Fonte: http://www.odiario.info/articulo.php?p=1392&more=1&c=1